Ao pensar a Língua Portuguesa, além da morfossintaxe, é preciso considerar o contexto histórico-cultural. Nesse sentido, a linguagem neutra está em efervescência tanto no meio digital quanto entre os linguistas. Por meio da subversão da norma padrão, os falantes interferem nas estruturas sociais. Com isso em mente, acompanhe a matéria para entender os entremeios e as polêmicas do assunto.
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O que é linguagem neutra: língua e povo
Na Língua Portuguesa, o gênero está relacionado ao masculino e ao feminino. A marcação é realizada por meio de desinências ou artigos, no caso de substantivos comuns de dois gêneros. Assim, no aspecto gramatical, a estrutura da língua não conhece o masculino e o feminino como elementos sexuais.
É necessário compreender que a língua não é apenas um emaranhado de regras estruturais, embora esse seja um aspecto relevante e amplamente estudado. Outro ponto muito importante é o uso – afinal, para existir gramática é preciso existir falantes. Por isso, é preciso olhar e entender o aspecto sociocultural.
Nesse complexo contexto, surge a discussão sobre a linguagem neutra, que vai além da dicotomia masculino-feminino, inserindo o neutro para promover a inclusão linguística-social. Entre as identidades de gênero, há pessoas, por exemplo, não binários, que não se encaixam no paradigma gramatical dicotômico. Por isso, lutam por uma língua que as abarque.
Novamente, apesar de a língua não conceber o gênero como algo relacionado ao desenvolvimento sexual de uma pessoa, os falantes constroem essa percepção ao longo do desenvolvimento linguístico. Isso acontece devido a um extenso processo cultural que molda a sociedade. Antes de aprofundar a discussão, é importante entender as regras vigentes.
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Os gêneros gramaticais na Língua Portuguesa
As descrições do linguista Mattoso Câmara ajudam a entender como ocorre o uso dos gêneros gramaticais em Língua Portuguesa. Para o estudioso, a construção do gênero gramatical parte do princípio de que o masculino não é marcado, apenas o feminino.
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Por exemplo, na palavra “menino”, o morfema -o corresponde apenas a uma vogal temática nominal, assim, a marcação de gênero é vazia (Ø). Já na palavra “menina”, o morfema -a corresponde ao gênero.
Com isso, ampara-se a noção de um masculino genérico ou neutro para se referir a todos os sujeitos em uma situação enunciativa. Exemplificando, observe a frase: “todos estão presentes”. Essa sententança engloba tanto homens quanto mulheres. Já na frase: “todas estão presentes”, por padrão, exclui-se o masculino.
Exemplos de linguagem neutra: subvertendo o padrão
Como a Língua Portuguesa não possui morfemas de gênero neutro, diversas comunidades realizam adaptações para tentar neutralizar as formas existentes. É importante salientar que as mudanças propostas miram, especificamente, palavras ligadas ao ser humano.
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Entre as mundaças, há sistemas linguísticos que focam apenas nos substantivos e nos adjetivos. Outros englobam pronomes e artigos. Abaixo, conheça exemplos de linguagem neutra:
- Formas @ e X no lugar das vogais A e O: a palavra “menino” seria escrita “menin@” ou “meninx”. Esse padrão está entrando em desuso, pois não é possível pronunciar com naturalidade esses vocábulos. Além disso, os leitores automáticos de texto não conseguem processar tais informações.
- Vogal E no lugar das vogais A e O: essa é a forma mais atual e amplamente utilizada, pois não interfere na luidez da pronúncia. Por exemplo, a palavra “todos” se transforma-se “todes”.
- Sistema “elu”, “ile”, “ilu” ou “el”: realiza substituições na estrutura pronominal. Por exemplo: “o peixe é delu”; “ile chegou atrasade à palestra”; “ilu não sabe se comportar”; “o cachorro é del”.
Perceba que os sistemas interferem nas palavras de caráter humano, neutralizando o uso das vogais O e A, padrões normativos da língua portuguesa. Essa discussão vai muito além da gramática. Entenda o assunto no próximo tópico.
Por que usar a linguagem neutra?
A linguagem neutra, conforme discutido acima, nasceu de uma necessidade social. Históricamente, as construções linguistícas estão atreladas às estruturas de poder – classe, raça e gênero, portanto apresentam traços machistas (como é o caso da palavra todos). Por isso, a comunidade LGBTQIA+ e feministas lutam por uma linguagem não binária e mais inclusiva.
Com isso, surge o questionamento: por que validar e utilizar a linguagem neutra? A resposta mais óbvia é: para promover a inclusão social e linguística! Vale destacar que essa inclusão começa na língua, inclusive excluindo do vocabulário expressões capacitistas e racistas, porém vai além, englobando desde a aceitação de nomes sociais até o combate ao preconceito.
A linguagem neutra diz muito sobre como as identidades são percebidas e respeitadas no meio social. Utilizar um pronome masculino para uma pessoa não binária pode causar desconforto identitário.
O que estão falando sobre a linguagem neutra: prós e contras
A linguagem neutra chamou a atenção de diversos setores: acadêmico, jornalístico, político e popular. Com isso em mente, para se aprofundar no assunto, é relevante conhecer os argumentos que permeiam o tema:
Argumentos favoráveis
- A linguagem neutra é uma forma de inclusão que abrange pessoas marginalizadas.
- Limitam-se as violências diárias, principalmente a nível discursivo, contra pessoas não binárias.
- O masculino e o feminino não são renegados, mas há uma expansão das capacidades descritivas da Língua Portuguesa.
Argumentos contrários
- Na Língua Portuguesa, já existe uma forma de neutralizar o discurso: o uso do masculino genérico.
- O uso da linguagem neutra pode acarretar problemas de acessibilidade, como nos leitores de texto automáticos ou para pessoas que realizam leitura labial.
- A linguagem neutra, sem uma padronização efetiva, não se encaixa no ensino de Língua Portuguesa a nível escolar.
As discussões sobre linguagem neutra ultrapassam as fronteiras brasileiras. Em outros países, o assunto também encontra apoiadores e detratores. Em resumo, o diálogo existe e está em evidência, no entanto há um longo caminho para chegar a uma resolução.
Polêmica da linguagem neutra
Como você pode perceber nos tópicos anteriores, o território da linguagem neutra ainda é bastante flexível. Nas esferas estaduais e federais, o assunto já foi motivo de muitas polêmicas. Por exemplo, no estado do Paraná, a Assembleia Legislativa (Alep) proibiu o uso da linguagem neutra nas escolas. Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou uma liminar que suspende uma lei semelhante à paranaense no estado de Rondônia.
Além disso, é necessário salientar a existência de diversos projetos de lei que tentam vetar o ensino da linguagem neutra nas escolas. Como ainda é um tema recente e divisor de opiniões, não há um consenso legislativo e jurídico sobre o assunto. Entretanto, pessoas influentes, que abraçam a causa da diversidade, usam essa linguagem em grandes eventos midiáticos, como em cerimônias oficiais do governo Lula. Isso é um possível indicativo de mudanças ou, pelo menos, de uma maior visibilidade do assunto.
Linguagem inclusiva: inclusão sem mudança morfológica
A linguagem neutra foca em mudar paradigmas morfológicos da Língua Portuguesa para promover a inclusão linguística de grupos marginalizados. Há, entretanto, a linguagem inclusiva, que não utiliza necessariamente neologismos, como “todes” ou “obrigade”. Para evitar racismo, marcações de gênero, capacitismo e demais formas de preconceito, usa-se estratégias discursivas.
Por exemplo, imagine que você queira agradecer a um grupo de pessoas: no masculino genérico, “agradecemos a todos”. Na linguagem neutra, “agradecemos a todes”. Na linguagem inclusiva, “agradecemos a presença”.
No último exemplo, o falante utiliza formas já correntes na língua para tentar produzir um discurso mais abrangente e menos focado em um gênero gramatical específico.
Vídeos sobre linguagem neutra: aprofundando a discussão
No decorrer da matéria, você aprendeu sobre linguagem neutra. Entretanto, como visto, o assunto é vasto, polêmico e está em construção. Abaixo, confira uma seleção de vídeos que discutem o assunto, perpassando pelos aspectos sociais e linguísticos.
A linguagem neutra em seus aspectos sociais e linguísticos
Nesse vídeo, os professores Fábio Ramos Barbosa Filho e Gabriel de Ávila Othero conversam sobre a linguagem neutra e trazem diversas informações interessantes sobre os elementos que envolvem a construção identitária. Além disso, explicam os aspectos morfológicos oriundos dessa nova vertente linguística.
O debate sobre a linguagem neutra não pode ser ignorado
Sírio Possenti é um pesquisador e linguista brasileiro. Nesse vídeo da TV Unicamp, ele debate sobre a importância de conversar e pesquisar sobre a linguagem neutra, bem como seus impactos na Língua Portuguesa.
A inclusão na linguagem neutra
Esse vídeo, produzido pela Universidade Federal de Minas Gerais, traz mais informações sobre o funcionamento da linguagem neutra e sua efetiva aplicação no cotidiano de comunicação.
A linguagem neutra está entre os assuntos da atualidade que podem cair nos vestibulares. Durante a leitura, você encontrou o termo “não binário” várias vezes. A matéria sobre identidade de gênero aprofunda a discussão e apresenta existências que fogem do padrão dicotômico social.
Referências
Estrutura da língua portuguesa (2021) – Joaquim Mattoso Camara Jr.
Gramática normativa da língua portuguesa (2021) – Rocha Lima.
Linguagem inclusiva: para além do “todes” (sem ano) – Vívian Rio Stella e Thaís Gurgel.
Linguagem “neutra”: língua e gênero em debate (2022) – Fábio Ramos Barbosa Filho e Gabriel de Ávila Othero (org.).
Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico (2020) – Luiz Carlos Schwindt.
Por Leonardo Ferrari
Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá. É professor assistente em colégio de ensino médio. Nas horas livres, dedica-se à família, aos amigos, à sétima arte e à leitura.
Ferrari, Leonardo. Linguagem neutra. Todo Estudo. Disponível em: https://www.todoestudo.com.br/portugues/linguagem-neutra. Acesso em: 13 de November de 2024.