Nos anos mais recentes, a apropriação cultural é uma expressão que tem ganhado espaço, principalmente no advento das redes sociais. Contudo, é necessário entender o seu significado político, bem como o contexto social e histórico que torna possível essa prática existir. Saiba mais a seguir.
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O que é a apropriação cultural
De um modo geral, a apropriação cultural diz respeito ao ato de utilizar elementos de uma cultura (como culinária, vestimenta, arte, entre outros) que não é a sua. Contudo, o ponto central da apropriação cultural é que ela ocorre entre pelo menos duas culturas com relações de poder desiguais.
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Por exemplo, um grupo de pessoas com grande poder aquisitivo pode começar a consumir e a vender as músicas que se originaram de uma cultura marginalizada. Logo, as vendas desse tipo de música começam a crescer, se tornando um objeto valorizado entre as pessoas da classe alta.
Nesse processo, as pessoas da cultura que geraram a arte não receberam nenhum benefício. Além disso, os seus os significados originais se perdem, se transformando em mais um produto entre muitos outros no mercado.
A questão racial
Como já se pode notar, o processo de apropriação cultural envolve o apagamento da cultura original para que seus elementos se tornem meras mercadorias ou consumíveis por pessoas de uma classe dominante. Ocorre que, no mundo capitalista, os grupos dominantes são compostos majoritariamente por pessoas brancas.
Portanto, a apropriação cultural é fundamentada no racismo estrutural e no processo de colonialismo. Em resumo, isso significa que existe uma longa história de desigualdades raciais em que as culturas de diversos povos são apagadas na história do Ocidente.
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Entretanto, como mostra o conceito de apropriação cultural, esse apagamento não significa que essas culturas são aniquiladas, mas são transformadas em mercadoria pela classe dominante, perdendo seus significados originais.
A origem dessa compreensão da apropriação cultural pode ser remontada à obra O genocídio do negro brasileiro, publicada originalmente em 1978, de Abdias Nascimento. Conforme o autor, matar um povo envolve não apenas o assassinato físico das pessoas, mas também de seus costumes, de sua arte, de sua língua e de sua cultura.
Assim, embora juridicamente a apropriação cultural não seja um crime, trata-se de um ato violento, que perpetua preconceitos e o racismo na sociedade. Logo, a crítica à apropriação cultural sempre envolve considerar as desigualdades sociais e a violência racial.
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Consequências da apropriação cultural
A apropriação cultural tem consequências diretas para as desigualdades raciais que já existem na sociedade. Entenda mais sobre alguns desses efeitos a seguir:
- Esquecimento da desigualdade: quando algum produto cultural se torna uma mera mercadoria, a cultura e as pessoas que o geraram são esquecidas. Assim, os problemas dessa sociedade que permitiram a apropriação acabam permanecendo os mesmos, apenas sendo reforçados.
- Comercialização: se elementos de uma cultura se tornam mercadoria, não significa que eles se tornem mais democráticos. Ao contrário, quer dizer que as pessoas que possuem recursos financeiros para consumi-los é que passam a ter acesso a eles. Logo, as desigualdades de classe também são mantidas.
- Esvaziamento do significado: muitos elementos culturais de um povo possuem uma história e um contexto social importante para as pessoas que se utilizam deles. Ao serem apropriados por uma classe dominante, esses traços se perdem.
- Perpetuação de estereótipos: é recorrente que um elemento da cultura seja simplificado e se torne um estereótipo. Por exemplo, a imagem comum de culinária leste-asiática ou de vestimentas africanas se tornaram versões simplistas, que não correspondem à realidade e a complexidade dessas culturas por causa desses estereótipos.
- Racismo estrutural: embora muitas pessoas de classes dominantes que consomem produtos culturais pregam a valorização da cultura do outro, tal apoio não ajuda a combater os reais problemas. Ao invés disso, a apropriação cultural apenas perpetua o apagamento dos significados dessas culturas.
Embora esses sejam apenas alguns dos efeitos possíveis da apropriação cultural, já é possível notar que esta é uma discussão maior do que uma única atitude de um indivíduo, pois toda apropriação cultural tem relação com contexto de exploração.
Como saber se é apropriação cultural
Em geral, é considerado apropriação cultural quando uma pessoa de uma classe dominante se utiliza de um elemento de outro povo sem refletir ou pesquisar antes os seus significados e ganha algum benefício ou fama por isso.
Nesse contexto, é frequente que elementos sagrados de religiões, vestimentas de resistência de um povo ou admirações irrefletidas sobre uma cultura, sejam usados por uma pessoa que não pertence a este contexto e muito menos refletiu sobre o assunto.
Exemplos de casos
A apropriação cultural não diz respeito somente sobre atitudes individuais. Contudo, alguns casos pontuais podem ser debatidos para entender o ponto central do assunto – isto é, as desigualdades estruturais de poder que permeiam as culturas. Veja a seguir:
Candomblé
Em uma festa promovida pela diretora de uma famosa revista de moda, a decoração da festa continha elementos que lembravam o período de escravidão no Brasil.
Um dos itens gerou polêmica: um trono em que a diretora se sentava ao lado de duas mulheres negras com roupas brancas.Ao se justificar diante da repercussão, a diretora afirmou que aquele trono não se tratava de uma cadeira de sinhá, mas sim de candomblé. Ou seja, uma cadeira de mãe de santo.
A justificativa da diretora acabou reiterando sua atitude problemática. Afinal, uma cadeira de mãe de santo não deve ser utilizada por qualquer pessoa no candomblé. Assim, a diretora, que não ocupava tal posição, usou de um símbolo precioso de uma religião de matriz africana para promover a sua festa.
Turbante
O debate em torno dos turbantes é bastante conhecido. Contudo, o caso de uma jovem branca diagnosticada com leucemia foi criticada por usar turbante. Na ocasião, a moça se manifestou nas redes sociais contando que um grupo de mulheres negras disseram a ela que não devia fazer uso do turbante.
Como diversas pessoas do movimento negro se manifestaram, um dos pontos mais interessantes desse caso não se trata necessariamente se a moça está correta ou não. Ao invés disso, é relevante discutir a repercussão que a jovem teve como uma pessoa branca.
Isto é, muitas pautas da população negra raramente ganham força nas redes sociais, a não ser em casos extremos de violência. Esse é um ponto fundamental, uma vez que a apropriação cultural não diz respeito somente a uma ação individual, mas tem relação com essa estrutura histórica de poder que diminui a importância das vozes de pessoas marginalizadas.
Funk
Este gênero musical teve um caso recente, que pode ser visto pensando em um processo maior de apropriações culturais. Décadas atrás, o funk era considerado uma música periférica, sendo apreciada apenas nos bailes de favelas, onde se originou.
Atualmente, a música foi apropriada em muitos espaços de elite, sendo consumida por jovens de classes abastadas. É possível notar festas que se autointitulam “baile funk”, mas que excluem pessoas de classes mais pobres em seus espaços. Assim, muitas pessoas discutem a apropriação cultural que está implicada na popularização do funk.
Há vários exemplos que não foram citados, como o caso dos indígenas e o usa de tranças. Portanto, o debate sobre apropriação cultural pode ser mais estendido.
Apropriação cultural ou troca cultural?
É considerado troca cultural quando várias pessoas de culturas diferentes compartilham e incorporam elementos dos costumes de cada um. Já a apropriação cultural envolve a desigualdade de poder, o apagamento dos sentidos da cultura original e o benefício de apenas um dos lados.
Entretanto, a história e o contexto colonialista e de violência racial não devem sair do escopo do debate. Logo, mesmo as trocas culturais estão envoltas em tais violências. Nesse sentido, é interessante notar as diversas formas como grupos marginalizados se utilizam de elementos da cultura dominante para serem ouvidas, como uma estratégia de resistência.
Para além da apropriação cultural
A discussão sobre a apropriação cultural é importante para compreender que os casos de ações individuais estão conectados com histórias antigas de exploração e dominação. Portanto, a partir desse conceito, é possível desdobrar vários debate sobre preconceito e ideologiais.
Além disso, é a partir do conceito de apropriação cultural que muitas pessoas de grupos marginalizados têm trazido suas pautas e reivindicações políticas. Logo, para além da apropriação, é importante se atentar para tais lutas políticas.
É possível admirar outras culturas de forma respeitosa?
Quando uma pessoa diz que admira uma outra cultura, é preciso primeiro entender se essa “cultura” não passa de um estereótipo que é resultado da comercialização e da apropriação cultural. Assim, é importante pesquisar e procurar saber mais sobre essa cultura para além do que é popularizado como mercadoria.
Além disso, não se deve perder de vista as desigualdades de poder que permeiam as relações. Embora possa ser bonito admirar uma outra cultura, é importante entender os problemas enfrentados por um povo e como o capitalismo os exploram.
Em outras palavras, quando se procura usar elementos de outra cultura, é necessário também estudar e conversar com pessoas sobre o assunto, entendendo os limites do que se pode fazer de modo respeitoso.
Apropriação cultural no Brasil
No Brasil, o debate sobre a apropriação cultural tem como um de seus planos de fundo fundamentais a discussão sobre o racismo estrutural. Ou seja, para além de casos específicos de apropriação, é urgente no país incentivar atitudes antirracistas e promover políticas de reparação histórica para a população negra.
Além disso, as reinvindicações políticas dos povos indígenas são relevantes no assunto. Sendo também alvos de um processo de apropriação cultural, é necessário que as políticas públicas e as demarcações de terras sejam levadas adiante para transformar as desigualdades sociais atuais.
Vídeos sobre o debate da apropriação cultural
Sabendo que a apropriação cultural é um debate que deve ser levado para além do próprio assunto, confira abaixo uma lista de vídeos que ajudam a pensar sobre as diferentes nuances desse tema:
Para repensar a apropriação cultural
Conforme já discutido, não é possível pensar o processo de apropriação cultural sem pensar no racismo estrutural. Assim, revise essa ideia com a discussão do vídeo acima.
A estética e sua importância política
Diante de tantos problemas que o racismo estrutural traz nas diferentes sociedades, falar de estética é um assunto relevante? Saiba mais sobre como as nossas aparências podem ter a ver com uma história maior de desigualdade social.
Uma conversa sobre autoestima
Para complementar o conteúdo, pensar sobre a autoestima criada coletivamente é relevante, pois se torna um meio de combater o racismo estrutural e também uma forma de identificação.
Valorizar a cultura do outro?
O discurso de valorização de uma cultura não ocorre apenas em relação àquelas de matriz africana, mas também com outros grupos étnico-raciais. No vídeo acima, veja um exemplo frequente no Brasil para pensar o assunto.
Portanto, as ações envolvidas na apropriação cultural, embora em alguns casos pareçam valorizar e homenagear outras culturas, acabam mantendo as desigualdades. Continue aprendendo, saiba mais sobre o eurocentrismo.
Referências
Apropriação cultural (2019) – Rodney William.
O genocídio do negro brasileiro (2016 [1978]) – Rodney William.
Racismo, apropriação cultural e a “crise conceitual” das identidades na modernidade (On-line) – Disponível em: http://snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1427821377_ARQUIVO_LISANDRA-TEXTOCOMPLETOANPUH2015.pdf. Acesso em 30 de abr. de 2022.
Por Mateus Oka
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Cientista social pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Realiza pesquisas na área da antropologia da ciência.
Oka, Mateus. Apropriação Cultural. Todo Estudo. Disponível em: https://www.todoestudo.com.br/sociologia/apropriacao-cultural. Acesso em: 05 de October de 2024.
1. [ENEM]
A hibridez descreve a cultura de pessoas que mantêm suas conexões com a terra de seus antepassados, relacionando-se com a cultura do local que habitam. Eles não anseiam retornar à sua “pátria” ou recuperar qualquer identidade étnica “pura” ou absoluta; ainda assim, preservam traços de outras culturas, tradições e histórias e resistem à assimilação.
CASHMORE, E. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000 (adaptado).
Contrapondo o fenômeno da hibridez à ideia de “pureza” cultural, observa-se que ele se manifesta quando:
a) criações originais deixam de existir entre os grupos de artistas, que passam a copiar as essências das obras uns dos outros.
b) civilizações se fecham a ponto de retomarem os seus próprios modelos culturais do passado, antes abandonados.
c) populações demonstram menosprezo por seu patrimônio artístico, apropriando-se de produtos culturais estrangeiros.
d) elementos culturais autênticos são descaracterizados e reintroduzidos com valores mais altos em seus lugares de origem.
e) intercâmbios entre diferentes povos e campos de produção cultural passam a gerar novos produtos e manifestações.
Resposta: e
Justificativa: a hibridez das culturas revela que as pessoas estão a todo o momento reinventando suas próprias culturas e criando novas manifestações. Isso é diferente do processo de apropriação cultural, que é uma violência fundamentada em desigualdades sociais.
2. [UNESP]
Cada cultura tem suas virtudes, seus vícios, seus conhecimentos, seus modos de vida, seus erros, suas ilusões. Na nossa atual era planetária, o mais importante é cada nação aspirar a integrar aquilo que as outras têm de melhor, e a buscar a simbiose do melhor de todas as culturas.
A França deve ser considerada em sua história não somente segundo os ideais de Liberdade-Igualdade-Fraternidade promulgados por sua Revolução, mas também segundo o comportamento de uma potência que, como seus vizinhos europeus, praticou durante séculos a escravidão em massa, e em sua colonização oprimiu povos e negou suas aspirações à emancipação.
Há uma barbárie europeia cuja cultura produziu o colonialismo e os totalitarismos fascistas, nazistas, comunistas. Devemos considerar uma cultura não somente segundo seus nobres ideais, mas também segundo sua maneira de camuflar sua barbárie sob esses ideais.
(Edgard Morin. Le Monde, 08.02.2012. Adaptado.)
No texto citado, o pensador contemporâneo Edgard Morin desenvolve
a) reflexões elogiosas acerca das consequências do etnocentrismo ocidental sobre outras culturas.
b) um ponto de vista idealista sobre a expansão dos ideais da Revolução Francesa na história.
c) argumentos que defendem o isolamento como forma de proteção dos valores culturais.
d) uma reflexão crítica acerca do contato entre a cultura ocidental e outras culturas na história.
e) uma defesa do caráter absoluto dos valores culturais da Revolução Francesa.
Resposta: d
Justificativa: o contato da cultura ocidental ou europeia sobre as demais, principalmente por meio da colonização, não foi um fenômeno amigável – ao contrário, foi gerada uma série de violências a partir desse contato eurocêntrico.