Cinismo

A recusa do prazer e a busca pela virtude. Entenda o que foi essa corrente filosófica e quem foram seus principais representantes

Na Antiguidade Clássica existiram diversas correntes filosóficas, sobretudo depois de Sócrates. O cinismo é uma delas. Você sabe o que é ser cínico, no sentido filosófico do termo? Neste post, vamos trabalhar o conceito de cinismo, essa corrente da Filosofia que negava os prazeres da vida e pregava a virtude e, também, conhecer seus principais filósofos.

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O cinismo e sua origem

O cinismo é uma corrente filosófica da Grécia Antiga, pertencente às chamadas escolas do Helenismo, junto com os estoicos, os céticos, os hedonistas, os epicuristas, os peripatéticos e os ecléticos. Os cínicos negavam todas as formas de prazer e desprezavam o acúmulo de bens materiais em detrimento de uma vida seguida pela virtude. Para os filósofos cínicos, exercer a virtude era o mais importante feito e era preciso viver de acordo com aquilo que eles pensavam.

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O estoicismo busca a felicidade por meio do domínio das paixões e um alinhamento à vontade geral da natureza.
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Epicurismo
Satisfazer as necessidades imediatas e entregar-se aos prazeres moderadamente. Conheça o epicurismo, doutrina que busca a felicidade nos prazeres.

O cinismo foi fundado por Antístenes, discípulo de Sócrates, mas foi Diógenes quem se tornou o cínico mais conhecido. Essa corrente filosófica se propagou amplamente durante o Império Romano no século I d.C e desapareceu por volta do século V d.C.

A etimologia da palavra cinismo serve para nos ajudar a compreender melhor os conceitos que envolvem essa corrente filosófica. Cinismo vem do grego kynikos, que significa “igual a um cão”. Isso porque Antístenes ensinava seus discípulos em um ginásio para os nothoi de Atenas, ou seja, aqueles que não tinham cidadania ateniense e esse ginásio se chamava Cinosargo, que significa “alimento de cão”, “cão rápido” ou “cão branco”. A ideia de chamá-los de cães estava relacionada à vida que os cínicos levavam, andando pelas ruas apenas com um manto como veste e um saco no qual carregavam comida.

No entanto, os cínicos se apropriaram desse termo e deram outro significado. Para eles, havia quatro motivos para serem chamados de cínicos (“igual a um cão”):

  • Pela indiferença com que levam suas vidas. Assim como um cachorro de rua, os cínicos dormem e comem nas ruas;
  • Os cães não têm pudor, da mesma forma que os cínicos negam o pudor, pois tentam superar a modéstia;
  • Os cínicos se veem como os cães no quesito à proteção. Os cães são bons de guarda e os cínicos também, na medida em que guardam os princípios da filosofia;
  • Os cães sabem identificar quem são os amigos e os inimigos, assim como os cínicos, que aceitam bem aqueles que estão de acordo com seus princípios filosóficos e expulsam os que não respeitam ou não são adeptos à filosofia.
  • Características do cinismo

    Como vimos, o cinismo era uma corrente filosófica com algumas ideias radicais. É possível sintetizar suas principais características como:

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    • A rejeição de tudo que não promovesse a virtude pura (como a família, o dinheiro, a sociedade, pois isso poderia gerar prazer), era preciso levar uma vida simples;
    • Busca pela autarquia, vivendo somente da natureza, ou seja, a autossuficiência, a não necessidade dos aparatos sociais;
    • Rejeitar a felicidade quando essa está relacionada ao dinheiro, à fama, ao poder ou ao prazer.

    Além dessas características, o cinismo, ainda que não tenha fundamentado uma doutrina, deixou alguns princípios bem definidos, tais como:

    • A vida tem como objetivo a felicidade (eudaimonia) e a lucidez, portanto, é preciso combater a ignorância, a arrogância e a presunção;
    • A felicidade não depende de nada que seja externo ao indivíduo, pois a virtude está na conduta moral do homem, naquilo que está em seu interior e no modo como ele age;
    • A eudaimonia só é alcançada ao se viver de acordo com a Physis (natureza), por meio da razão (logos) humana;
    • Falsos julgamentos de valor causam a arrogância, esses falsos julgamentos geram emoções negativas e desejos não naturais que podem levar ao vício, por isso é preciso da lucidez para combater a arrogância;
    • A eudaimonia só se desenvolve se o ser humano for autárquico e autossuficiente. Além disso, é preciso exercer a apatia, a virtude e a indiferença face às mudanças da vida;
    • Apenas as práticas ascéticas (aquelas que recusam o prazer) é que são capazes de provocar a evolução no ser humano, para que ele se liberte das influências da sociedade;
    • O cínico é aquele que desafia o nomos da sociedade, ou seja, as leis, as convenções, os costumes que são tidos como certos e verdadeiros;
    • É preciso se libertar das preocupações com a morte, a saúde, o sofrimento de si e dos outros;
    • Por fim, a sabedoria consiste no agir, não só no pensar.

    Por meio desses princípios e dessas características é que os cínicos desenvolveram seus ensinamentos e deixaram seus legados. Vejamos, agora, alguns dos filósofos cínicos e seus principais pensamentos.

    Filósofos do cinismo

    Assim como Sócrates, os filósofos cínicos não deixaram nada escrito, contudo, seus pensamentos perduraram por meio da tradição oral e por aqueles que os criticavam.

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    Antístenes (445 a.C — 365 a.C)

    Antístenes ficou conhecido como o fundador da corrente cínica. Filho de um ateniense com uma escrava trácia, o filósofo não tinha cidadania ateniense e, portanto, nenhum direito. Por não ser cidadão ateniense, ele só podia ensinar seus discípulos no ginásio de Cinosargo. Antes de ser discípulo de Sócrates, Antístenes foi aluno de Górgias, com quem aprendeu a retórica.

    Como discípulo de Sócrates, Antístenes entendeu que o prazer não era o motivo da existência humana, mas sim a felicidade exercida por meio da virtude, por isso, seus estudos foram focados sobretudo na ética, entretanto, também estudou lógica, física e religião. Antístenes era contrário aos prazeres que resultariam em gratificações de desejos e entendia que a virtude dependia diretamente da razão. Ele também foi quem primeiro tentou conciliar pensamento e ação dentro da escola cínica.

    Diógenes de Sinope (412 a.C — 323 a.C)

    Discípulo de Antístenes, Diógenes foi o mais conhecido dos filósofos cínicos, chamado de “O Cão”. Sabemos da sua vida por causa das anedotas e algumas representações artísticas que sobreviveram. Ele era descrito como um mendigo que morava dentro de um barril e que carregava uma lamparina durante o dia procurando por um homem honesto. Diógenes, como o mais radical dos cínicos, desprezava todas as formas de luxos que a sociedade poderia oferecer.

    Por acreditar que o agir era mais importante, ele se empenhou em tentar destruir as instituições sociais e seus valores, pois entendia que era uma sociedade corrupta. Ele levou a lógica do cinismo ao extremo e desprezou completamente a opinião pública ao seu respeito, além de se mostrar totalmente indiferente aos valores, às leis e aos costumes sociais. Em Diógenes, é possível entender que o cinismo é uma oposição entre physis (natureza) e nomos (leis).

    Crates de Tebas (365 a.C — 285 a.C)

    Crates foi discípulo de Diógenes. Segundo os historiadores, ele era filho de Ascondo, um homem rico, no entanto, Crates abriu mão de sua herança e foi viver na pobreza, de acordo com o cinismo, em Atenas. Uma versão da história conta que Crates deixou seu dinheiro para um banqueiro, para que esse entregasse para seus filhos, mas se os filhos de Crates também se tornassem filósofos, então o dinheiro deveria ser distribuído aos pobres. Outra história conta que ele deixou sua herança para os cidadãos de Tebas. Crates foi o professor de Zenão de Cítio, fundador do Estoicismo.

    Ficou conhecido como “o abridor de portas”, por ir às casas dos amigos sem ser convidado e por entrar nas casas das pessoas para resolver os problemas intrafamiliares. Além disso, casou-se como Hipárquia, outra filósofa que seguia a corrente cínica.

    Hipárquia (350 a.C — 280 a.C)

    Hipárquia foi uma filósofa cínica e merece atenção por ser uma das poucas mulheres filósofas da Antiguidade Clássica. Foi conhecida por desafiar os papéis de gênero da sociedade grega e as funções que a mulher deveria exercer. Seu casamento com Crates também foi um modo de questionar as imposições feitas às mulheres. Como todos os cínicos, Hipárquia também entendia que era preciso viver de acordo com a natureza e rejeitar o materialismo, de modo a sustentar a ideia de autossuficiência.

    O casamento entre Hipárquia e Crates influenciou Zenão de Cítio a elaborar a teoria do estoicismo e defender a igualdade entre os gêneros. Hipárquia também ficou conhecida por debater com Teodoro, o Ateu, quando ele colocou em dúvida a legitimidade de Hipáquia como filósofa, dizendo que ela deveria estar tecendo. Ela então respondeu que utilizou o tempo dela com a educação e não com o tear, mais uma vez defendendo sua posição de que as mulheres não deveriam se limitar aos afazeres domésticos.

    Legado do cinismo

    O cinismo foi uma corrente que influenciou o estoicismo, uma vez que Zenão de Cítio foi discípulo de Crates de Tebas. Além disso, vemos a forte influência do cinismo no início do Império Romano, em que alguns filósofos tentavam imitar o modo de vida de Diógenes, como Demétrio. Outro filósofo influenciado pelo cinismo, sobretudo por Diógenes, foi Nietzsche.

    Atualmente atribuímos o termo “cínico” à pessoa que é indiferente aos outros e às instituições ou, ainda, que despreza as convenções sociais e que pensa ser superior por isso.

    Está curioso para saber mais sobre esses filósofos e seus modos de agir?

    Nesses vídeos, podemos encontrar a história do cinismo de forma animada e seus principais filósofos, bem como o desenvolvimento de conceitos que foram apresentados de modo breve nesse post.

    O cinismo e a vida de Diógenes

    Nesse vídeo do canal Epifania Experiência, você pode acompanhar a filosofia de Diógenes e os filósofos que ele combatia, como Platão. Além disso, explora a visão de Diógenes sobre a escravidão.

    Veja como podemos usar a filosofia, como em alguns conteúdos da série Chaves

    Esse vídeo é interessante porque mostra que a Filosofia não é uma disciplina morta. É possível ver teorias filosóficas em tudo, basta analisarmos com mais atenção. Afinal, a Filosofia é a base de todo pensamento ocidental. Nesse vídeo, o exemplo é com a série Chaves.

    Aprofundando-se ainda mais sobre Diógenes

    No vídeo do canal Polis Consultoria, Sérgio Lucena expõe a diferença entre o emprego do termo cínico nos dias atuais e na Antiguidade Clássica. Além de expor os conceitos da escola cínica, Sérgio faz uma relação com o período histórico e a corrente filosófica.

    Tem curiosidade de conhecer outras correntes filosóficas? Que tal conhecer Epicuro?

    Referências

    A tripartição da retórica no cinismo de Diógenes de Sinope (2020) – George F. B. B. Borges
    Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (1988) – Diógenes Laércio
    O pordē de Crates e a conversão de Metrocles à filosofia cínica (2020) – Brenner B. O. Silveira

    Marilia Duka
    Por Marilia Duka

    Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá em 2016. Graduada em Letras Português/Francês na Universidade Estadual de Maringá em 2022.

    Como referenciar este conteúdo

    Duka, Marilia. Cinismo. Todo Estudo. Disponível em: https://www.todoestudo.com.br/filosofia/cinismo. Acesso em: 30 de April de 2024.

    Exercícios resolvidos

    1.

    Quais das correntes filosóficas abaixo podem ser consideradas do período helenístico:

    a) estoicismo, marxismo e platonismo;
    b) estoicismo, epicurismo e tomismo;
    c) epicurismo, cinismo, estoicismo e ceticismo;
    d) platonismo e neoplatonismo e aristotelismo;
    e) epicurismo, platonismo, estoicismo e ceticismo.

    A alternativa correta é a C, tendo em vista que o marxismo é uma corrente contemporânea, o tomismo é medieval, o neoplatonismo é do final do Império Romano e o platonismo é anterior ao Período Helenístico.

    2. [Filosofia para todos]

    Os cínicos podem ser chamados de cães. Qual alternativa abaixo NÃO justifica tal designação?

    a) por causa da indiferença de seu modo de vida, pois fazem um culto à indiferença e, assim como os cães, comem e fazem amor em público, andam descalços e dormem em banheiras nas encruzilhadas.
    b) porque o cão é um animal sem pudor, e os cínicos fazem um culto á falta de pudor, não como sendo falta de modéstia, mas como sendo superior a ela.
    c) porque o cão é um bom guarda e eles guardam os princípios de sua filosofia, os valores naturais e necessários para a vida.
    d) porque o cão é um animal exigente que pode distinguir entre os seus amigos e inimigos. Portanto, eles reconhecem como amigos aqueles que são adequados à filosofia, e os recebem gentilmente, enquanto os inaptos são afugentados por ele, como os cães fazem, ladrando contra eles.
    e) porque o cão é um animal domesticado e que pode viver entre os homens, aceitando assim, a sua cultura.

    A alternativa E deve ser a assinalada.
    O principal pensamento dos cínicos é o desprezo pelas leis e pelos costumes e a busca pela felicidade por meio da virtude. Eles se igualam aos cães porque esses animais não têm pudor e sabem distinguir seus amigos dos seus inimigos. Os cínicos, diferente do que está sendo afirmado na alternativa E, não aceitavam sua cultura, pois a critivam.

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