Ao longo da história, o dogmatismo assumiu diversos significados, inclusive pejorativos. No entendimento geral, é dogmático o conhecimento imposto sem que se prove sua verdade ou se discuta sua validade. Na filosofia, pode significar também a crença de que é possível alcançar verdades absolutas ou, ainda, a busca pelo conhecimento que ultrapassa as faculdades de conhecer da razão.
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O que é dogmatismo?
O termo dogmatismo surgiu ainda na Antiguidade para demarcar uma oposição ao ceticismo. Assim, os filósofos dogmáticos eram os que definiam sua opinião sobre todos os assuntos, enquanto os céticos não a definiam. Um dos primeiros filósofos a utilizar o termo desse modo foi o Sexto Empírico, um cético pirrônico que teria vivido entre os séculos II e III. Para ele, eram dogmáticos todos os que não eram céticos. Cabe ressaltar que o ceticismo, o qual tem a origem atribuída a Pirro de Élida (c. 360-270 a.C.), defende a dúvida a respeito de todo e qualquer conhecimento, pois das coisas só podemos apreender a aparência que, por sua vez, é mutável. Portanto, enquanto o dogmático crê na existência de verdades absolutas, o cético duvida da existência de quaisquer verdades que possam ser acessadas pelos seres humanos.
Posteriormente, no século XVIII, Kant dá outro significado ao termo. Com a influência do escocês David Hume a questionar a capacidade humana de chegar a verdades absolutas, dogmatismo define os que aventuram a razão fora de sua esfera para o alemão. Isto é, raciocinam “levianamente” sobre as coisas das quais nada se pode afirmar, como os objetos metafísicos que estão além da esfera da experiência possível.
Dogmatismo no senso comum
O dogmático do senso comum é aquele que está certo de ser o portador da verdade e tenta impô-la aos outros sem recorrer ao diálogo. Neste caso, a pessoa se abstém de questionar a validade e os fundamentos de seu conhecimento e, consequentemente, toma como verdade coisas pelas quais não admite ser questionada, seja por ignorância ou intransigência. Aqui, podemos incluir desde aquelas crenças inofensivas, como “beber leite com manga faz mal”, até preconceitos de classe e raciais que interferem no bem-estar e na igualdade social.
Representantes do dogmatismo
É obscuro falar em representantes do dogmatismo, porque, em suma, raramente o que é dogmático se autodenomina tal. Os filósofos pré-socráticos, por exemplo, não se compreendiam como dogmáticos, mas podem ser considerados assim, visto que careciam de reflexões epistemológicas. Isso significa que eles não se preocupavam em problematizar o conhecimento, mas compreender o objeto por si.
Mais adiante na história, o filósofo alemão Immanuel Kant rechaçava o que considerava um “dogmatismo metafísico”, do qual os principais representantes seriam o francês René Descartes e seus compatriotas Gottfried Leibniz e Christian Wolff em razão de estes cultivarem a metafísica – o conhecimento que não pode ser apreendido e conhecido pelos sentidos, como o cosmos, Deus ou a alma – sem antes tratar a capacidade da razão para tal conhecimento. Neste sentido, poderiam ser considerados dogmáticos quase todos os filósofos anteriores a Kant.
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Tipos de dogmatismo
Há três modos de abordagem a respeito do conhecimento dogmático, que se diferenciam de acordo com a relação do sujeito com a verdade, conforme listamos abaixo.
- Ingênuo: é um dogmático ingênuo aquele que acredita em algo porque pensa não ser possível haver outra verdade, geralmente, por falta de recursos ou meios para apreender conhecimentos diversos àqueles que toma para si como verdadeiros.
- Racional: neste grupo, estão os que creem ser possível alcançar verdades absolutas tão somente através de seu intelecto, ou seja, com uma metodologia racional que dispense os sentidos.
- Irracional: os dogmáticos irracionais supõem a fé como a via mais confiável para conhecer a verdade. Deste modo, confiam nos conhecimentos adquiridos por revelação ou até mesmo pela própria intuição.
Enfim, poderíamos dizer que o homem e a mulher primitivos eram dogmáticos ingênuos, pois não dispunham de meios suficientes para conhecer os fenômenos que lhes eram apresentados. Por outro lado, o filósofo René Descartes se aproximaria do que chamamos de dogmático racional, por acreditar que através de um método cartesiano, apelo ao exclusivamente racional, alcançaria a verdade. Por fim, dogmas religiosos compõem o dogmatismo irracional, pois utilizam a fé como principal instrumento para chegar a uma verdade, como as revelações religiosas ou dos astros.
Exemplos de dogmatismo
É possível notar o pensamento dogmático presente nos mais distintos discursos e áreas. A seguir, mostramos algumas esferas mais comuns em que o dogmatismo está inserido.
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Religioso
O dogmatismo religioso, também chamado de dogma, se refere àquelas verdades fundamentais que determinadas religiões possuem e que, mesmo que não possam ser compreendidas pela razão ou pelos sentidos, são inquestionáveis dentro daquelas doutrinas. Exemplos destes dogmas são as revelações divinas por meio de livros sagrados, os quais são cridos por meio da fé.
Filosófico
Como já mencionado, na filosofia o dogmatismo é utilizado para denominar aqueles filósofos que acreditam ser possível alcançar verdades absolutas, como René Descartes, que com o método cartesiano buscava o conhecimento de verdades de validade inquestionável pela via racional. Alguns filósofos, no entanto, discordam que isso seja possível, como os céticos da tradição pirrônica e alguns filósofos modernos, sob influência de Hume e Kant.
Político
O dogmatismo político é aquele que não permite a pluralidade partidária ou ideológica, como ocorre em regimes totalitários. Determinado partido, movimento, ou indivíduo político passa a ser o único portador da razão. As consequências de um Estado tomado por uma doutrina dogmática podem ser: censura, repressão e violência.
Crítico
O dogmatismo crítico é a crença de que se o indivíduo empreender esforços intelectuais e sensíveis, então, será capaz de conhecer a verdade. Aqui, pode-se incluir o dogmatismo científico e a crença de que as pesquisas são incontestáveis e finitas, não levando em consideração a metodologia utilizada e a mutabilidade do objeto.
Isto posto, não é incomum reconhecer o dogmatismo em nosso cotidiano ou em nossas próprias atitudes. Alguns exemplos citados acima estão presentes em nosso mundo desde os primórdios da história e permanecem enraizados na sociedade contemporânea. Cabe, portanto, a cada sujeito cultivar o discernimento e a prudência necessários para combater o dogmatismo quando este se torna nocivo e intolerante.
Vídeos para entender melhor
É impossível falar de dogmatismo sem mencionar outras correntes como o ceticismo e o criticismo, pois aquele geralmente é tratado como mera oposição a estes. Por isso, selecionamos alguns vídeos para aprofundar seus conhecimentos sobre o dogmatismo, apresentando o contexto de sua relação com os demais conceitos filosóficos.
Dogmatismo, ceticismo e falibilidade
Neste vídeo, o professor Mateus Salvadori explica de forma concisa o conceito de dogmatismo, além de apresentar outros modos com os quais podemos nos relacionar com a verdade.
Ceticismo
O dogmatismo estabeleceu-se na filosofia como uma contraposição ao ceticismo. Aqui, o professor Júlio Cesar fala sobre a dúvida filosófica.
O despertar do sono dogmático
De maneira simples e descontraída, o professor Ibsen explana a doutrina criticista, conceito criado por Kant em oposição ao dogmatismo.
Portanto, o dogmatismo é um conceito pleno de significados e aplicações. Como vimos, ele assume múltiplos sentidos tanto em nossa vida cotidiana, quanto na filosofia. O próprio conhecimento filosófico é composto pelas mais variadas doutrinas e correntes de pensamento, reflexo da diversidade e complexidade do mundo em que vivemos e buscamos conhecer.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. – 5ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. – 7ª ed. – Coimbra: Arménio Amado, 1980.
VOGT, Katja. Ancient Skepticism. In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/fall2018/entries/skepticism-ancient/. Acesso em: 24 de abril de 2020.
Por Thaís Bravin Carmello
Licenciada e mestra em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá.
Carmello, Thaís Bravin. Dogmatismo. Todo Estudo. Disponível em: https://www.todoestudo.com.br/filosofia/dogmatismo. Acesso em: 13 de December de 2024.
1. [UEM]
“[…] ‘dogmatismo’ é uma atitude filosófica caracterizada pela ausência da crítica em relação ao que podemos conhecer através da razão. Em filosofia, o dogmatismo corresponde ao intuito de apresentar verdades últimas sobre as questões mais essenciais ao homem, tais como a imortalidade da alma, a origem do mundo (incluindo nisto o tema da liberdade) e a existência de Deus, sem, todavia, indagar-se preliminarmente se, de fato, podemos avançar enunciados teórico-especulativos sobre esses objetos. É isto o que a crítica cuida de examinar, ao instituir o que está ao nosso alcance conhecer. Ao fim deste exame, Kant conclui pela ilegitimidade dos enunciados dogmáticos acerca do que se encontra para além da experiência, isto é, o suprassensível. A resposta negativa de Kant representa o fim da metafísica tradicional: ao contrário do que haviam pretendido os filósofos dogmáticos, não há como fornecer, com base apenas na razão, um conhecimento de matriz teórico sobre a alma, a liberdade e Deus. Por outro lado, isso não significa que a razão não possa pensar tais ‘objetos’. Ao contrário, Kant […] mostra que esses temas são imprescindíveis para nossa razão em sua dimensão prática e moral.” (FIGUEIREDO, V. Kant e a liberdade de pensar publicamente. In: MARÇAL, J. (org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009, p. 402).
Com base na afirmação acima, assinale o que for correto.
01) A impossibilidade de conhecimento sobre objetos suprassensíveis não anula a importância desses objetos para o desempenho da religião e do comportamento moral.
02) O dogmatismo é decorrente da atitude pseudofilosófica que consiste em confundir, na ordem do conhecimento, objetos sensíveis e suprassensíveis.
04) Os objetos da razão, quando não pertencem à experiência sensível, estão comprometidos com o imperativo categórico e não podem ser conhecidos.
08) A metafísica tradicional desejava conhecer a existência de Deus, da imortalidade da alma e a finalidade do mundo.
16) Kant se apresenta como o pai da metafísica tradicional, pois confunde conhecimento racional e empírico.
Resposta: 11 (01+02+08)
Justificativa:
01) São objetos suprassensíveis, conforme o texto: alma, liberdade e Deus. Nas duas últimas sentenças do excerto lê-se que “[…] não significa que a razão não possa pensar tais ‘objetos’. Ao contrário, Kant […] mostra que esses temas são imprescindíveis para nossa razão em sua dimensão prática e moral.”. Portanto, a alternativa é correta.
02) O texto nos apresenta algumas definições de dogmatismo que corroboram a validade da alternativa, como na afirmação de que “Kant conclui pela ilegitimidade dos enunciados dogmáticos acerca do que se encontra para além da experiência, isto é, o suprassensível.”. Nesta frase, entende-se a ‘ilegitimidade dos enunciados’ uma consideração de que dogmatismo é uma pseudofilosofia tal qual exposto na alternativa, também se compreende aqui o fato de os dogmáticos confundirem os limites do que pode ser apreendido pela razão (coisas sensíveis) com o que não pode ser apreendido (coisas suprassensíveis). Deste modo, a alternativa é correta.
04) Assim como na primeira alternativa, consideremos o trecho do texto em que é afirmado que “isso não significa que a razão não possa pensar tais ‘objetos’”. Sendo assim, com base apenas no enunciado é precipitado afirmar que os objetos da razão não possam ser conhecidos, e a alternativa é incorreta.
08) A alternativa é correta, pois o autor do texto afirma que em Kant está decretado o fim da metafísica tradicional visto que seus representantes, os dogmáticos, pretendiam conhecer com base na razão conhecimentos suprassensíveis como a liberdade (o que nas primeiras linhas é classificado como conceito da origem do mundo, portanto, sua finalidade), a alma e Deus.
16) O texto afirma exatamente o contrário – que a análise de Kant representa o fim da metafísica tradicional. Portanto, alternativa incorreta.
2. [UNESP]
Dogmatismo vem da palavra grega dogma, que significa: uma opinião estabelecida por decreto e ensinada como uma doutrina, sem contestação. O dogmatismo é uma atitude autoritária e submissa. Autoritária porque não admite dúvida, contestação e crítica. Submissa porque se curva a opiniões estabelecidas. A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto a ciência baseia-se em pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade.
(Marilena Chauí. Convite à filosofia, 1994. Adaptado.)
a) Cite duas implicações políticas do dogmatismo.
b) Do ponto de vista da objetividade, explique por que o conhecimento científico é superior ao senso comum.
Sugestão de resposta:
a) Considerando que, conforme Marilena Chauí, o dogmatismo não permite contestação e compreende uma atitude autoritária e submissa, nessa alternativa poderão ser mencionadas implicações referentes a regimes autoritários e/ou propostas políticas que seguem a linha totalitária. Portanto, o vestibulando poderia mencionar atitudes como: censura e repressão a pensamentos que se opõem ao dogma do regime vigente; desestímulo ao debate racional sobre políticas públicas e demais ações governamentais; ações de violência em resposta à falta de diálogo político, tanto dos que estão de acordo quanto daqueles que contestam o dogma; educação e informação unilateral, isto é, onde prevalece o favorecimento ao detentor do poder.
b) Por objetividade entende-se o fato de o objeto ser analisado e compreendido conforme sua própria realidade, e não pela opinião pessoal do sujeito. Deste modo, o vestibulando deve discorrer sobre a superioridade da ciência, pois, ela se baseia em pesquisas com metodologias e instrumentos para a compreensão do objeto conforme sua realidade. Assim, um experimento, quando bem-sucedido dentro do que é proposto, pode ser reproduzido ou aperfeiçoado por outros pesquisadores, de modo que a investigação do problema permaneça coerente, pois, o objeto é sempre analisado pelo o que ele é. Enquanto no senso comum, prevalecem crenças pessoais e valores subjetivos, que não consideram o objeto como ele é, mas sim por opiniões não fundamentadas, que variam conforme cada indivíduo.